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Sobre a cólera pós-moderna


O medo e a cólera não são bons conselheiros. Esta velha máxima de senso comum e da sabedoria intuitiva enraizada na alma dos povos parece estar um pouco esquecida em nossos dias. Por todos os lados, nos mais diversos ambientes e setores da vida humana, nas redes sociais e nos espaços públicos percebemos a intensificação e a difusão de tais sentimentos de um modo patológico e desregrado, o que é, inquestionavelmente, um sintoma do desequilíbrio psíquico e espiritual e da confusão moral que marca a cultura pós-moderna, em sua etapa última de dissolução social e desintegração de todos os valores.


É evidente que a ira é um tipo de sentimento reativo que faz parte da natureza humana, sendo, portanto, um elemento constitutivo de nossa psique e de nossa cultura, o problema é quando esta emoção torna-se desregrada, quando ela não é canalizada e sublimada. A raiva desmedida, sem limites e freios, conduz à loucura e ao domínio dos excessos. Conforme explica o filósofo Peter Sloterdijk, a raiva aparece como uma forma de orgulho ferido que pode levar ao desejo de vingança, ao ressentimento, cristalizando-se em uma espécie de ódio estrutural. Um impulso fora de controle transfigura-se em uma força autodestrutiva. Por conta da exacerbação desta emoção em nosso tempo, em muitos lugares e instâncias é fácil notar um estado de tensão permanente, de guerra civil constante. Os espaços sociais e políticos são concebidos e vivenciados na prática como arenas de lutas e disputas incessantes; são percebidos como zonas para a exibição do ego e de seus impulsos. Nestes sítios exteriorizam-se as insatisfações, as obsessões, os desejos e os afetos. A esfera política na contemporaneidade torna-se um campo psíquico, onde prevalecem as paixões, as emoções e os sentimentos; como consequência disto a argumentação racional, a persuasão e o debate civilizado se esfacelam.


A raiva pós-moderna é essencialmente niilista, egocêntrica e puramente anárquica. Ela não é mobilizada e transmutada para algo positivo, não é dirigida para a concretização de um ideal ou de um projeto social e cultural de longo prazo. Neste cenário qualquer forma de autêntica unidade, cooperação e solidariedade converte-se em uma missão impossível. Não há nada de grandioso, elevado e heroico nas explosões de ira contemporâneas.


Alimentar a raiva é algo nocivo a nossa saúde física, mental e espiritual. É ela uma disposição psicológica narcisista típica de adolescentes mimados que estão sempre a desafiar qualquer tipo de autoridade e norma, rebelando-se contra tudo e contra todos e, que, de modo desesperado, buscam por atenção e reconhecimento de seu grupo de referência. Em geral, a emoção chamada raiva nasce da frustração e do vazio interior, bem como do sentimento de impotência e medo. O raivoso compulsivo foge das responsabilidades pessoais, procurando ansiosamente por um bode expiatório, projetando nos outros a culpa por todos os males que lhe afligem.


Ceder facilmente aos sentimentos de rancor e de ódio é ser subjugado pelo pecado; é, em síntese, ser envenenado por uma energia psíquica destruidora. O ódio visceral é uma emoção degradante que afasta a pessoa do seu centro espiritual, vampirizando as relações sociais e contaminando de detritos psíquicos a necessária convivência humana. A cólera perturba nossa alma e cega nossa capacidade de julgar, observar e decidir de maneira racional e prudente. Na verdade, neutraliza qualquer forma de reflexão e postura criadora e construtiva. O rancor separa o indivíduo de si mesmo e dos outros, criando barreiras e obstáculos nas interações intersubjetivas.


Não podemos nos deixar levar pelo ódio, não devemos permitir que esta força que surge do subsolo da alma humana consuma nossas energias e obscureça nossa inteligência. O ódio é ,via de regra, uma potência anímica demoníaca. É deste sentimento e atitude de inveja, ressentimento e cólera que nasce a revolta luciferina contra a ordem divina da criação. De algum modo, todas as revoluções destruidoras da ordem social e moral brotam destas sombras e trevas psíquicas.


Nesse sentido, é um erro elementar lutar contra os males interiores e exteriores que assolam a humanidade usando as estratégias e a retórica do mal. Está fadada ao fracasso qualquer ação e forma de pensamento que pretenda enfrentar as forças do caos e da subversão utilizando-se das próprias armas nefastas e aniquiladoras do inimigo. Invariavelmente, nestes casos, costuma ocorrer um movimento do tipo boomerang.


O mal e as forças da destruição devem ser enfrentadas de maneira resoluta, com inteligência, serenidade, cautela e coragem. Fazer o que deve ser feito, com energia, ânimo, altivez, sem ser emocionalmente envolvido, sem se deixar ser consumido pela raiva e o ódio, agindo, assim, com certa impassibilidade e lucidez. Trata-se, deste modo, de abater o mal de uma maneira implacável e inquebrantável, com discrição e força espiritual. Sobre a postura que o soldado de Cristo e da Tradição precisa assumir frente aos príncipes deste mundo e as forças titânicas, o grande escritor Ernst Jünger, em um trecho luminoso do ensaio A paz asseverou com grande clarividência e beleza:


“A pessoa singular deve entender em primeiro lugar que a paz não vai brotar da fadiga. Também o medo contribui para a guerra e para a prolongação da guerra. Somente assim explica-se que a segunda guerra mundial explodiu depois de um prazo tão breve. Para que exista a paz não basta não querer a guerra. A paz autêntica supõe coragem, uma coragem superior a que se necessita na guerra; é uma expressão de trabalho espiritual, de poder espiritual. E este poder adquirimos quando sabemos apagar dentro de nós o fogo vermelho que ali arde e desprendemo-nos, começando pelas coisas próprias, do ódio e da divisão que o ódio traz consigo. A pessoa singular se parece com a luz, que, ao iluminar, derrota a escuridão. Uma luz pequena é maior, mais imperiosa, do que qualquer obscuridade. Isto também se aplica aos homens que necessariamente cairão. Eles avançam em bom estado até a eternidade. Pois a autêntica luta na qual estamos ocorre de um modo cada vez mais evidente entre os poderes da aniquilação e os poderes da vida. Nesta luta, os guerreiros justos se alinham ombro a ombro, como a antiga cavalaria costumava fazer. A paz vai durar se isso conseguir se expressar”.




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