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O problema do conspiracionismo





Cesar Ranquetat Jr.


Um dos fenômenos mais interessantes que, de um modo ruidoso e obstinado, chama a atenção do observador do confuso cenário político e social de nossa época é o pulular de teorias conspiratórias de todo tipo. Para qualquer evento importante que ocorre no mundo surgem exóticas e absurdas explicações conspiracionistas. O surgimento da pandemia da Covid-19 parece ter intensificado esta tendência. O fato é que o imaginário conspiracionista tende a crescer nos momentos de grave crise, anarquia e turbulência coletiva.


Não é por acaso que os sites, blogs e canais no Youtube que tratam sobre as mais mirabolantes e fabuladoras hipóteses de conspiração mundial, estejam entre os mais acessados. Há um “mercado de conspirações” para consumo massivo. Teses espalhafatosas, exóticas e criativas que são de fazer inveja ao romance policial O Código Da Vinci de Dan Brown, brotam no mundo virtual atraindo a curiosidade de multidões sedentas de uma chave explicativa simples e direta para os problemas do mundo atual. Estaremos diante de uma rota de fuga, de um mecanismo de defesa, de uma espécie de injeção de adrenalina para um tipo humano aburguesado e entediado em face de um mundo vazio e sem sentido? Será o conspiracionismo que fervilha nas redes sociais mais um sintoma do estado de espírito de extrema confusão, incoerência e irracionalidade que caracteriza a modernidade líquida? O conspiracionismo galhofeiro, sem freios metodológicos e controle racional, não seria uma forma sutil de oposição controlada e permitida? Por quais razões as “teorias do complô” ganham força e popularidade, tornando-se um instrumento de comunicação e “explicação” dos problemas culturais e societais de nossa época?


Para o sociólogo italiano Carlo Gambescia, três são os motivos principais da pujança e do relativo sucesso destas explicações redutoras e intepretações fantasmagóricas que se propagam com grande facilidade. Primeiro, a ideia de uma grande conspiração mundial secreta apresenta um imenso poder de sedução, golpeando a imaginação coletiva, pois, indica um inimigo de maneira cristalina e direta (o alvo é variado, dependendo do grupo político que levante a hipótese conspirativa, o bode expiatório pode ser os comunistas, os fascistas, sociedades secretas, organizações ocultistas, a KGB, a China, reacionários ultramontanos ou até mesmo estranhas e bizarras entidades alienígenas). Estas “teorias” são um exemplo clássico de uma ideia-força, de um mito mobilizador, que proporciona um sentido de unidade e coesão em torno de uma pessoa ou grupo social, vítima do presumido complô, e, por outro lado, reforça o caráter supostamente compacto e monolítico dos “inimigos” autores da conjura. Além disso, estas teorias possuem um inegável caráter conflitual, que une e divide pessoas e grupos de um modo bastante veemente. Em segundo lugar, a ideia de um complô, tem uma função social e cognitiva tornando claro e evidente algo que em um primeiro momento é incompressível, tendo o efeito de tranquilizar e amainar certas inquietudes. Em terceiro lugar, apresenta um fundo animístico, ou melhor, antropológico. Os indivíduos e as coletividades têm uma necessidade, quase fisiológica, de acreditar que por trás dos fenômenos sociais existe uma “força oculta e superior” que tudo dirige e explica. A noção de que existiriam “superiores desconhecidos” regendo o mundo de maneira integral; e de que estes imprimem uma direção linear e irrestrita aos acontecimentos é uma forma de determinismo social que dá um sentido e um propósito à vida e as situações políticas. Torna compreensível o que parece incompreensível, dando significado a algo que é sem sentido. Todos os fatos e eventos diversos são organizados e explicados a partir da ação de uma inflexível força única e fundamental.


O cientista político Alain de Benoist destaca que as teorias do complô representam uma imensa economia de esforços, pois, em lugar de estimularem o surgimento de múltiplas, variadas e amplas pesquisas históricas, sociológicas, antropológicas e psicológicas, fomentam a ideia de uma explicação “salvadora” que pretente tudo elucidar através da intervenção de uma causa única. Contra elas nenhum argumento contrário é válido; para seus defensores elas apresentam um caráter dogmático, não podendo ser contestadas e “falsificadas”. O que rejeita a teoria é visto como “ingênuo”, um idiota, um alienado, e em caso extremos é rotulado como um cúmplice ativo da conjura universal. Para o politólogo francês, tais especulações são em grande parte “delírios de interpretação”, frequentemente acompanhadas por reações típicas de desconfiança, suscetibilidade excessiva e agressividade.


O conspiracionismo paranoico e elucubrador, de caráter não verificável e destituído de razoabilidade, acaba por desacreditar e até mesmo ridicularizar qualquer tipo de pensamento verdadeiramente dissidente e alternativo, misturando alhos com bugalhos em um verdadeiro festival carnavalesco de ideias e dados confusos, contraditórios e inverossímeis.


Sufocando e neutralizando uma autêntica reação contras os mitos modernos e os poderes fortes, criando bodes expiatórios e espantalhos de todo tipo - pois é sempre mais fácil do ponto vista cognitivo e prático combater forças personificadas do que entender e lutar contra princípios, ideias e fenômenos históricos por demais amplos e complexos - boa parte das elucubrações complotistas, em ultima instância, dão munição ao establishment. Além de, em muitas situações, servirem como uma cortina de fumaça que encobre e inibe o enfrentamento de problemas efetivamente reais e concretos. O conspiracionismo pode levar a um estado de resignação e fatalismo social que, através de um sutil mecanismo psicológico, acaba por justificar o atual estado caótico do mundo, e a incapacidade do homem de resistir e enfrentar forças presumivelmente invencíveis e com um poder total. De maneira indireta e, em muitos casos de modo não intencional, estas teses fantasiosas reforçam a narrativa oficial da mídia mainstream, também permeada, cabe ressaltar, de notícias falsas e enviesadas.


O conspiracionismo é uma forma de construtivismo social, pois parte do pressuposto de que os eventos sociais são inteiramente fabricados e calculados por um grupo restrito de "agentes ocultos" que, além disso, agiriam tendo em vista a concretização de um plano meticulosamente predeterminado e perfeitamente previsível em todas as suas etapas e desdobramentos. Esta visão é irrealista e fantasiosa, pois a realidade social e os eventos históricos são sistemas complexos e multifacetados que resultam da ação e da interação de uma miríade de indivíduos e grupos com objetivos e finalidades distintas, opostas e não previsíveis.


A mentalidade conspiracionista parece não perceber o forte elemento de imprevisibilidade, incerteza, contingência, acidentalidade e acaso na história. Existe sempre nos fenômenos políticos e culturais algo de indecifrável e aleatório. Ademais, não nota que em muitas ocasiões concretas ocorre que as intenções, planos e finalidades dos agentes não se cumprem, ou ainda, resultam em consequências diversas do esperado. Na sociedade e na vida política é bastante comum o fenômeno da heterotelia, explicada pelo sociólogo Jules Monnerot como um “um efeito perverso”, isto é, um resultado diferente daquele que tinha sido previsto. Interessante lembrar que o grande Max Weber chamou este fato como “heterogênese dos fins”, asseverando que este acontece quando o objetivo alcançado é distinto do que se almejava. Resumindo: sempre há que se levar em consideração que nem todo fato social é um resultado mecânico de um plano mirabolante, de uma orquestração sinistra. Os agentes históricos não agem de uma forma exclusivamente lógica e não possuem o dom mágico da ubiquidade.

Ora, a sociedade humana real não é uma imensa Matrix controlada por indivíduos onipresentes e com poderes ilimitados. Isto não significa, por outro lado, negar a existência de complôs pontuais, localizados e temporários. Porém, afirmar peremptoriamente e de maneira dogmática acerca da existência de uma grandiosa conspiração universal com poderes absolutos e que tudo permeia e determina é, simplesmente, sair do domínio da história e da realidade concreta e adentrar o reino das fábulas e das lendas urbanas. O conspiracionismo sem freios metodológicos pode ser percebido como um modo de manipulação ideológica dos fatos sociais e dos eventos históricos, uma espécie de ideologia de justificação como afirmaria Pareto, que, em síntese, busca racionalizar e legitimar determinados objetivos políticos e geopolíticos.


Em termos sociológicos, um dos grandes equívocos de certas doutrinas e estratégias políticas é afrontar e denunciar de maneira estridente e retórica determinados atores individuais e coletivos, sem combater com firmeza e solidez doutrinária e sutileza tática, o contexto político, jurídico e simbólico que possibilita o surgimento de determinados agentes, práticas sociais e correntes de opinião.


É inegável que, resumindo este difícil problema, os atores surgem, se reproduzem e se multiplicam no interior e em decorrência da existência de estruturas sociais e culturais muitas vezes perversas, corruptoras e anormais. Pouco adianta bater em A ou B sem colocar em questão em sua totalidade o sistema anômalo e espiritualmente patológico que prepara e permite a eclosão de agentes corruptos e subversivos.

Entre os agentes concretos e os sistemas sociais de perversão existem relações de interdependência. Atacando unicamente os protagonistas individuais, corre-se o risco de se manter o status quo incólume, deslocando o foco do cenário societal anômico para os atores que, vale lembrar, são evidentemente transitórios e com poder de ação sempre limitado.


De um ponto de vista “humano", é claro que sempre é mais fácil personalizar os problemas, ao invés de esmiuçar suas origens e causas remotas em estruturas simbólicas, correntes de pensamento, imaginários coletivos, bem como em práticas culturais sedimentadas. É mais simples lutar contra indivíduos do que contra ideias, formas culturais e sugestões coletivas.

Contudo, qualquer análise séria e objetiva parte da dura realidade de que os agentes individuais não são demiurgos onipotentes e oniscientes, e que, além disso, somente podem emergir e agir dentro dos quadros de referência condicionados pelas estruturais sociais hegemônicas. Em uma sociedade complexa, marcada por uma intricada trama de relações de poder, pela diferenciação social, e cadeias de interdependência humanas cada vez mais complicadas, as explicações dos acontecimentos sociais que singularizam pessoas como se fossem as suas causas únicas tornam-se inadequadas, como explica o historiador Norbert Elias:


As pessoas experimentam a opacidade e a complexidade crescente das teias de relações humanas. Pensam que diminui obviamente a possibilidade de qualquer indivíduo (por muito poderoso que seja) tomar decisões só por si, independentemente dos outros. São testemunhas das decisões constantes tomadas no decurso de provas de força e de lutas pelo poder entre muitas pessoas e grupos – lutas muitas vezes conduzidas estritamente de acordo com as regras, outras vezes não. Toda esta experiência prática força-as a compreender que são necessários outros modos de pensar mais impessoais se é que querem compreender estes processos sociais opacos.


Um verdadeiro espírito crítico e de saudável ceticismo necessita sempre colocar em questão e examinar com cuidado as "versões oficiais" e estabelecidas, mas também deve inquirir e escrutinar as chamadas "narrativas e visões alternativas". Nem sempre o "alternativo" ao "estabelecido" é a verdade última. Nesta avalanche de notícias, pseudoteorias e dados despejados pelas redes sociais existe muita desinformação, caos e anarquia mental.



Como conclusão, sublinho que não estou a negar a existência de “poderes fortes” que agem de maneira discreta; nem muito menos procuro projetar uma cortina de fumaça sobre a ação e os jogos de poder de grupos de pressão, lobbies, grandes corporações econômicas multinacionais, serviços de inteligência, nações e organizações transnacionais na arena geopolítica mundial. Seria um ato de inocência juvenil contradizer estas influências. Ademais, não rejeito as honestas e sérias pesquisas que destrincham os mecanismos de controle e manipulação por parte de determinadas forças políticas e culturais e seus perigosos projetos de poder, mas tão somente procurei enfatizar e elucidar certos exageros e simplismos que existem em certo estado de espírito, ou melhor, em uma forma de mentalidade conspiracionista, que, muitas vezes, suscita um clima psicológico de constante desconfiança, suspeita e animosidade entre pessoas com perspectivas distintas. É preciso estar atento às mitologias conspiracionistas modernas que, em muitas situações, revelam-se, sobretudo, como um modo particular de “ideia-força” que galvaniza as emoções e alivia certas tensões e angústias do homem contemporâneo, simplificando de maneira extrema as lutas de poder e as relações de força que permeiam as complexas sociedades atuais.


Imagem: https://ctxt.es/es/20200401/Multimedia/32063/Fran-Delgado-pandemia-covid-coronavirus-portadas.htm


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