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Writer's pictureCesar Ranquetat

Foucault, o desconstrucionismo e a ideologia de gênero

Existem autores e ideias que, para além de seu caráter racional e de sua consistência lógica e valor explicativo, assumem um halo mágico, uma estranha capacidade de sedução e enfeitiçamento. Este é o caso de Michel Foucault. Autor renomado, incensado e transformado em ícone pop e revolucionário. O historiador e sociólogo francês é uma referência fundamental, um símbolo fundacional e um mito mobilizador no campo das Ciências Humanas. Sua excêntrica e conturbada biografia já se tornou em certos círculos intelectuais e ambientes culturais e políticos de extrema esquerda uma hagiografia; seus pensamentos e livros são concebidos como portadores de verdades libertadoras com uma singular e curiosa qualidade catártica. O idolatrado pensador que em suas obras rechaçou a existência de verdades perenes erigiu com uma linguagem hermética e abstrusa um sistema filosófico que, curiosamente, adquiriu feições dogmáticas e proféticas.


Foucault é visto como uma espécie de totem sagrado que merece ser cultuado e reverenciado. Suas palavras e ideias possuem um caráter oracular; questionar, criticar e contestar seus posicionamentos é cometer um ato de sacrilégio. Ai daqueles insensatos que rechaçam sua mensagem libertadora.


Em um interessante livro publicado na França com o sugestivo e instigador título "Putain" de saint Foucault: archéologie d'un fetiche (2015), o pesquisador François Bousquet, desvela com uma prosa elegante e irônica as aventuras e desventuras deste peculiar personagem, expondo com rigor e agudeza os paradoxos, contradições e absurdos das ideias do bajulado autor pós-estruturalista.


Não abordarei aqui os aspectos extravagantes e controversos da vida de Foucault, examinados com sarcasmo e franqueza por Bousquet, mas enfatizarei os elementos de inconsistência existentes em seu pensamento e, sobretudo, o vínculo do afamado historiador francês com o desconstrucionismo e a ideologia de gênero.


Um dos aspectos centrais da visão de mundo foucaultiana é a ideia da morte do homem, do eclipse do sujeito. Princípio este defendido pelos autores pós-estruturalistas e desconstrucionistas que formam a chamada French Teory, que, vale ressaltar, é o embrião dos conhecidos estudos de gênero (gender studies), estudos culturais (cultural studies) e dos chamados estudos pós-coloniais (postcolonial studies), hoje dominantes em determinados ambientes. Para estas escolas de pensamento, o humanismo estaria superado, assim como a noção de uma identidade pessoal substancial e estável. O fim do homem, a negação do sujeito, é um dos pressupostos das filosofias e sociologias pós-estruturalistas que, resumidamente, asseveram que as estruturas são superiores aos atores, não existindo agentes históricos, mas unicamente “epistemes impessoais”. Neste sentido proclamava Foucault: “o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas rechaçar o que somos”. Trata-se evidentemente de uma assertiva anti-socrática.


De acordo com Bousquet, o autor pós-estruturalista não apenas despojou o homem de sua majestade, mas também elegeu como residência para o humano o crime e a loucura. Esta escolha pelo subhumano, pelo “bestial” e o degradado, significa, em ultima instância, uma revolta existencial contra a ordem divina da criação e o posto central do homem no cosmos, enquanto um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Invariavelmente, o ódio contra o homem esconde e desemboca no ódio contra Deus. Os desfiguradores do homem são os que almejam a liquefação do divino e do sagrado.


Em conexão com esta postura teórica, Foucault nega a existência de verdades objetivas e de um sentido no mundo e na existência humana. Para ele, o sentido é “uma espécie de efeito, um brilho, uma espuma”. Na realidade, um nada, um vazio, um abismo. Seguindo de algum modo as ideias de Nietzsche que afirmava não existir os fatos, mas tão somente a interpretação dos fatos, tudo, desta maneira, se transmuta num jogo de palavras, enunciados, discursos, narrativas, construções e destruições. Como o homem, o sentido e a verdade são esfaceladas e edifica-se um confuso e nebuloso mundo de meras palavras, signos manipulados e manipuláveis que, conforme elucida Bousquet, assinalam formas de poder e de dominação. Os termos e as noções já não mais designam a realidade, representando e comunicando as outras pessoas as coisas que existem. Todo este fantasmagórico mundo de termos e sinais converte-se em pretexto para produzir “efeitos de poder”. Estamos assim, parodiando um dos livros de Foucault As palavras e as coisas, em face de “palavras sem as coisas”, de sentidos flutuantes, de noções e categorias que parecem não ter mais qualquer tipo de conexão com o real e a concretude do mundo. Tudo se transfigura em construção e desconstrução, luta entre sinos verbais e embates por poder e domínio. É este o universo da vontade de potência e de lutas sem fim em nome de ficções linguísticas. Realidade destituída de seres, de coisas, da natureza, do significado e da luz da verdade. Lúgubre mundo este. Cabe lembrar que se tudo é discurso, o que Foucault afirma é apenas mais um discurso e, portanto, não pode ser visto como uma verdade inquestionável.


Parece-me que Foucault buscou racionalizar, em suas teorias e estudos, muitas das suas inclinações e paixões. Aspectos psicológicos da personalidade de Foucault, até certo ponto, explicam suas especulações sociológicas e a escolha por certos objetos e temas de investigação. Com maestria Bousquet explora a controvertida vida do renomado pensador francês, assinalando certas regularidades: uma irrefreável pulsão de morte, uma vontade de aniquilação, um delírio de indiferenciação e um desejo de autodestruição. Ao longo de sua vida procurou as experiências limite, lançando-se com avidez em situações existenciais obscuras e perigosas. Segundo explica Bousquet, existia nele uma encarniçada fobia pelos princípios e pelos “cimentos”, pelas forças e valores que dão a existência dos indivíduos um sentido, uma direção e alguma solidez. Estranhamente retirou o nome de seu pai, Paul. Foucault chamava-se Paul-Michel. Isto é simbólico. A “negação do nome do pai anuncia o reino dos filhos sem nome e filiação – o tempo dos renegados”. Acrescenta Bousquet, que Foucault aspirava desaparecer, procurando freneticamente um modo de vida caracterizado pela dissipação e por uma radical despersonalização. Em toda a sua existência pretendeu de maneira agitada e ansiosa perder-se, extraviar-se, desviar-se em uma perpétua fuga de si. A sede de perdição se sobrepunha à aspiração pela salvação. O abismo, e os poderes “noturnos e inquietantes” exerciam sobre ele uma inusitada fascinação. Em certa oportunidade afirmou que escrevia para “deixar de ter rosto”. Como Georges Bataille, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e outros escritores de extrema esquerda, foi seduzido pela “magia do negativo”; este obscuro fascínio pelo nada, pelo caos, pela desordem e pela destruição que é o núcleo invisível de muitas das teorias pós-modernas, desconstrucionistas e neomarxistas. Nestes casos, é evidente a presença da barbárie intelectualizada e de elementos regressivos. O marquês de Sade parece ser o grande hierofante que orienta a iniciação nestes “saberes clandestinos”, e nestas práticas febris que ambicionam misturar perigosamente o prazer com a morte.


É interessante observar como os fiéis seguidores de Foucault que costumam falar tanto em tolerância, respeito pela diferença e luta contra toda forma de preconceito, adotando assim um adocicado discurso humanitarista aparentemente pacifista, não percebam, ou finjam não perceber, que seu guru intelectual proclamava a morte do homem, a anulação do indivíduo em face das estruturas e mecanismo de poder. Foucault foi um dos mais destacados propugnadores do anti-humanismo e da dessacralização de todos os valores e instituições tradicionais. Ironicamente, ao insurgir-se contra o mundo das normas e princípios acabou por criar uma nova ortodoxia, um novo conjunto de “dogmas” libertários, diversitários, narcisistas e hedonistas que refletem a mentalidade hegemônica em nossa época relativista e crepuscular. Foucault, como outros autores neomarxistas e pós-marxistas, reverencia e torna o sujeito do processo revolucionário o lumpemproletariado, isto é, as “minorias”, os insatisfeitos, os que estão nas “margens”, os excluídos e os iconoclastas. Contraditoriamente para este fim subversivo surgem os atores reais de carne e osso. Além disso, a luta contra a exclusão e contras todas as formas de preconceito substituem a luta de classes e o combate contra a exploração capitalista. O lema agora é destruir a falocracia, o machismo e a heteronormatividade, destroçando todos os tabus, e aniquilando os “estereótipos” e a opressão patriarcal.


Sem rodeios linguísticos e tergiversações, neste ponto ele é direto e objetivo, o autor de Vigir e Punir realiza um elogio do crime e da loucura, percebendo nos atos de transgressão algo de numinoso, um sinal excelso de revolta e contestação ao sistema. Como explica Bousquet, Foucault em seus livros estudou e legitimou quaisquer formas de comportamento desviante com a ambição de fazer da violação da norma, ou melhor, do desvio a norma última: “a norma de ausência de normas, a norma do anormal”. Para tanto, teve que inverter a relação entre o normal e o patológico, tornando patológico o primeiro, e normalizando o segundo. Há nele um inusitado fascínio pela delinquência e pelos tipos humanos que se encontram “marginalizados”, excluídos, por isto suas penetrantes pesquisas históricas e sociológicas sobre o “louco”, o “preso”, o “desviante”, sua escolha pela investigação da “vida dos homens infames e dissolutos”é reveladora. Esta exaltação das “margens”, do periférico, do que foge e viola as normas não é desprovida de sentido, há implicitamente nela a existência de um projeto político subversivo e de uma determinada visão do homem e da existência.


Foucault estava obcecado com o problema do poder, com as relações de dominação e as estruturas de opressão. Com certa inspiração gnóstica percebia o mundo como um gigantesco e tenebroso cárcere, um universo essencialmente hostil, maléfico, permeado por criaturas perversas e mecanismos de controle, coação e vigilância total. Este poder onipresente, difuso, visível e invisível, disseminado em cada uma das atividades humanas e em todas as esferas sociais formaria uma imensa sociedade tentacular, impessoal, marcada por tecnologias invasivas e instrumentos de biopolítica, ou seja, dispositivos de formatação e manipulação do corpo e da subjetividade. Cabe lembrar que sua hostilidade para com o mundo da disciplina, da autoridade e da hierarquia fundamenta o discurso da nova esquerda pós-marxista que, historicamente, manifesta-se com fúria e rebeldia no famoso movimento de maio de 68 na França. Na atualidade suas ideias institucionalizaram-se, o establishment cultural e midiático é foucaultiano. De alguma maneira, a rebeldia aburguesou-se, pois tornou-se um elemento essencial do poder dominante.


Um dos pontos altos do livro de François Bousquet está em deslindar as relações entre a sociologia de Foucault e o pensamento liberal. Ao final de seu percurso intelectual, o historiador francês se encanta com os autores liberais, mais particularmente com Gary Becker, Milton Friedman e Friederich Hayek. Estranho encontro este. Porém, no fundo prenhe de convergências ideológicas e táticas. Em linhas gerais, o que atrai Foucault no neoliberalismo é a sua potencialidade libertária e emancipadora, o seu rechaço pelo poder do Estado e pelo princípio da autoridade e da norma. O anarquismo libertino do autor de Vigir e Punir combate o Leviatã estatal. Ademais, tece loas a sociedade liberal avançada, “a sociedade aberta”. Segundo Bousquet, como alguns liberais e libertários radicais e progressistas, Foucault sente alergia e horror por todo tipo de limite e limitações, ambiciona destruí-las em prol de uma configuração social desregulada, flexível, móvel, líquida. Percebe no liberalismo a presença de propriedades utópicas, pois acredita que este possui uma natural ojeriza pela ideia de restrição e pelo princípio de precaução, elementos centrais das “sociedades disciplinares e punitivas”, combatidas pelo intelectual pós-marxista. O potencial de atomização social, de inseguridade cultural, de desordem, de entropia e caos que existe em formas radicalizadas de liberalismo seduz Foucault. Suas virtudes de “destruição criativa” e de desregulação, são o equivalente na esfera econômica, do trabalho teórico de destruição – desconstrução levado a cabo pelo autor pós-estruturalista no campo sociológico e filosófico.


Bousquet demonstra que para Foucault a liberdade econômica, a liberdade de mercado e o livre-comércio são alavancas para a sua utopia de uma anarquismo libertino, na medida em que propiciam e facilitam a única liberdade que sempre o obcecou: a liberdade de experimentar, a liberdade de “viver intensamente e perigosamente”. Como sublinha o ensaísta neste importante livro: “o mercado orquestra a crescente pluralidade de formas de vida heterogêneas que já nenhuma norma social organiza (otimização dos sistemas de diferenças)”. Ainda observa com grande perspicácia que, de um modo geral, as sociedade liberais favorecem e fortalecem a ideia e a realidade da “diversidade”, nelas não mais existe a noção de comunidade política, mas unicamente um agregado de minorias.


Inegavelmente, Foucault foi um dos autores que mais influenciou o surgimento da ideologia de gênero, forjando uma linguagem peculiar, bem como conceitos e categorias de análise, que prepararam o caminho e facilitaram o desenvolvimento e a consolidação desta perspectiva doutrinária e prática política. Foi ele quem arquitetou a hipótese de que não existe o sexo em si, mas exclusivamente sexualidades flutuantes, instáveis, indeterminadas.


Não podemos esquecer que Foucault é o autor de uma importante obra sobre o tema: A História da Sexualidade, publicada em 3 volumes. Além disso, entendia que o “sexo” não é uma realidade natural, mas uma construção cultural e histórica. Sendo uma construção social, nada impede que este “artefato” possa ser descontruído e recombinado em diversas e múltiplas formas. Nele encontram-se as bases para a afirmação da estratégia da politização do sexo e de sexualização da política e da cultura com a saturação do espaço público e do imaginário pelo obsceno. Assim como os elementos conceituais que fundamentam técnicas de engenharia social que visam, em síntese, a desconstrução da identidade sexual masculina e feminina e a eliminação da cunhada “heterossexualidade normativa obrigatória”.


Neste sentido, importa aqui lembrar que o pensador francês insinuava em um pronunciamento realizado em 1978, o emergir de algo novo, de uma realidade não propriamente humana ligada a uma natureza fixa e essencial. Com palavras permeadas de uma tonalidade mística anunciava o futuro nascimento de “um ser que ainda não existe, e que não sabemos exatamente saber o que será”. Curiosa afirmação. Será Foucault o profeta de uma época pós-humana, o arauto do transhumanismo? Bousquet não tem dúvidas, ao ressaltar uma inquietante aspiração de superação do humano na vida e nas ideias do festejado teórico social. Assinala o ensaísta que Foucault predicava um “futuro mutante”, formado por criaturas proteiformes e informes, em permanente processo de vir a ser. Na verdade, seres indeterminados, híbridos, que resultariam de bricolagens compostas por elementos orgânicos e dispositivos cibernéticos, uma espécie de cyborg. A subjetividade em sua total e irrestrita liberdade, emancipada da natureza e de todos os condicionamentos e restrições, construiria a si mesma, supostamente, do nada, sem referências e modelos paradigmáticos. Desta maneira, como diz Bousquet, surgiria algo assim como um Frankenstein ou o Prometeu pós-moderno. Será uma criatura bizarra e polimorfa ou então o homem fundido com máquina o horizonte último da pós-modernidade niilista? Desponta em toda sua concretude e realismo a morte do humano vaticinada pelos desconstrucionistas em sua prosa obscura.


Não há como negar estar realidade apontada por François Bousquet em seu ensaio: a episteme da época é foucaultiana. O rechaço dos papeis sexuais, os estudos de gênero, a politização do corpo, a revanche das minorias, a desconstrução da noção de desvio, tudo isto é ele também. Biopolítica, dispositivos de governamentabilidade, instituições disciplinares, são outros tantos elementos de seu vocabulário que dominam o nosso tempo. É ele o “totem de uma época sem tabus”, a figura emblemática do “apocalipse suave e siliconado” no qual vivemos e sobrevivemos em meio aos destroços criados pelos desconstrutores. O problema é que o feitiço costuma voltar-se contra os feiticeiros, de modo que, facilmente e inesperadamente, a desconstrução pode atingir os desconstrutores. Nenhum homem e sociedade suportam o vazio e o caos por muito tempo. Das ruínas podem surgir novos impulsos, e, sobretudo, a força necessária para erguer mais uma vez o templo do espírito.

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