Cesar Alberto Ranquetat Jr.
No Brasil e em outros países do continente sul-americano parece existir de maneira consciente ou velada uma espécie de complexo de inferioridade, uma tendência psicossocial de perceber nossas estruturas culturais e povos como piores que os outros. Isto nos leva a querer copiar as modas, ideias e estilos de existência vindas do estrangeiro, do “gringo”, do ocidental modernizado e aburguesado. Queremos ilusoriamente ser como os norte-americanos e europeus, esquecendo e desprezando nossa identidade nacional. Este é um grande equívoco que se baseia em uma visão estreita, desfocada e “exterior” sobre nós próprios.
Existe por estas terras um furor imitativo, uma perigosa inclinação presente em nossa psicologia coletiva de se deixar levar pelos símbolos de progresso e civilização propagados pelos produtores e manipuladores de sentido, de ideias, imagens e mitos construídos de modo artificial e com claríssima orientação antinacional e antitradicional, que visa transformar os povos em um amontoado confuso de indivíduos atomizados sedentos em consumir, e gozar de modo hedonista a vida em divertimentos, entretenimentos e prazeres estéreis.
Renunciamos a um “olhar nativo” sobre nossos problemas concretos. Nosso ponto de vista, nosso modo de compreender a realidade local, nacional e continental é algo que chega desde fora e nutre-se de categorias abstratas desconectadas de nossas particularidades.
Não olhamos a nossa cultura com as lentes de nossa tradição espiritual e social formadora, mas com os binóculos avançados, porém não adaptados ao nosso meio concreto; fabricados estes instrumentos por outros que, supostamente, representam o ápice do progresso material e tecnológico. Sentimo-nos e agimos como estrangeiros em nossas próprias pátrias, assumindo com facilidade e passividade uma perspectiva exclusivamente moderna e cosmopolita acerca do que atualmente somos e do que podemos ser. Com isto, ocorre um processo de crescente alienação da consciência, que não mais se debruça na tarefa de observação e análise dos nossos reais problemas sociais e de nossas potenciais virtudes criadoras, porém, de maneira distraída e fugaz, entrega-se a devaneios utópicos e abstrações de toda ordem. Esta percepção falsa e artificial alimenta ilusórias antinomias e enganadoras alternativas, nos afastando da questão central que, de maneira simplificada e resumida, pode ser assim colocada: a dicotomia decisiva não se encontra em dualidades como o ocidente capitalista e liberal versus o resto, ou entre a civilização e a barbárie, formulada por ideólogos e estrategistas made in USA ou mesmo europeizantes, mas entre o nacional e tradicional contra os elementos cosmopolitas, oligárquicos e materialistas de orientação antinacional e antitradicional.
Os ideólogos produtores de ideologias de dominação material e espiritual identificam maliciosamente a civilização com o Tio Sam e a Europa, fazendo assim com que os "outros", como os brasileiros e os povos ibero-americanos, sejam vistos como atrasados, primitivos, arcaicos, rústicos e bárbaros, por não seguirem o pretendido único modelo paradigmático de organização política, econômica e cultural.
Nós, os atrasados e “selvagens”, devemos nos civilizar, submetendo-se aos ditames das culturas progressistas e liberais. Este é seguramente o caminho mais rápido e cômodo para nossa total subordinação e para a consolidação de formas sutis de colonialismo cultural e econômico.
Como assinala o sociólogo argentino Arturo Jauretche, a antítese entre civilização e barbárie, como chave de interpretação da história dos povos ibero-americanos, considera como bárbaro tudo o que é próprio, e como civilizado tudo o que é importado; o que é evoluído e avançado tem que vir de fora. Ambiciona-se, assim, transplantar para o espaço hispano-americano modos de vida do mundo moderno, da Europa e dos Estados Unidos principalmente. Deste modo, somente encontraríamos o caminho do desenvolvimento e do progresso deixando de ser o que somos; abandonando por completo nossas raízes históricas e nossa identidade espiritual, prescindindo do desafio e da missão de construir com coragem e paciência o nosso específico modo de ser e conviver no mundo.
Esta atitude de subordinação, dependência e colonialismo cultural desmoraliza e deprime as formas de ordem social que não seguem o modelo único, ocidental, liberal e tecnicista; fazendo com que, aos poucos, percamos a fé em nós próprios e em nosso peculiar destino. Esta postura conduz, em ultima instância, a destruição da nossa própria realidade e impede a formulação de um pensamento e um projeto nacional particular, de acordo com o nosso meio e nossa configuração societal.
De um modo geral, a mentalidade colonial pode ser caracterizada como a incorporação do país à “civilização” e não da civilização ao país. Questiona com agudeza Jauretche: utilizamos os elementos da civilização para facilitar um desenvolvimento próprio, ou simplesmente nos incorporamos submetidos a um pensamento, a uma política e a uma formação como “colônia”, para ser utilizada e instrumentalizada por forças exógenas? Além disso, o cientista social argentino sublinha a necessidade de que as classes falantes, os intelectuais, libertem-se de esquemas mentais forâneos e, portanto, concentrem suas energias morais e mentais na formação de um pensamento nacional, ou melhor, de uma interpretação nacional, acrescentaria – tradicional e não moderna e liberal – dos fatos nacionais.
Importa aqui ressaltar que no Brasil formou-se uma sociedade específica, com caraterísticas e traços singulares, uma cultura luso-tropical, segundo a feliz expressão do grande antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre. Cultura estruturada principalmente pelo elemento ibérico e cristão, mas não única e exclusivamente europeia e ocidental. Segundo o mestre de Apipucos, trata-se de uma formação social que, sob vários aspectos, é extra-europeia ou mais que europeia. Cultura forjada incialmente por europeus, sobretudo hispânicos, africanos e ameríndios em condições tropicais: clima tropical, vegetação tropical, paisagem tropical, luz tropical e cores tropicais.
Nesta região do mundo, contrariando a expectativa e as previsões de muitos escritores, cientistas e próceres do ocidentalismo que, dentre outras coisas, especulavam sobre a impossibilidade de surgir um mundo civilizado em ambiente tropical, desenvolveu-se um espaço nacional particular de dimensões continentais e com imensos recursos humanos e naturais. Cultura plural, multifacetada, plástica e aberta ao influxo enriquecedor de diversos grupos humanos. Neste país grandioso e com diversidades reais, do ponto de vista étnico, social, cultural e regional, não há lugar para exclusivismos, sectarismos e etnocentrismos, ou ao menos por conta de nossa formação e passado não deveria haver.
Em contraste com o projeto nacional e continental brasileiro e ibero-americano, surgem velhas e novas formas de dominação e colonização ideológica, geopolítica e econômica que partem principalmente do establishment anglo-americano e de poderes mundiais transnacionais, oligárquicos e desenraizados. Gilberto Freyre já em seu tempo alertara para os riscos dos imperialismos e das ambições de uniformização cultural: “O perigo da monotonia cultural ou da excessiva unificação de cultura no continente americano provém da influência do industrialismo capitalista norte-americano, largamente dominado pela ideia de que o que é bom para o norte-americano deve ser bom para todos os outros povos da América. Alguns dos industriais norte-americanos, cujo ideal se inclina para a uniformização do mundo, parecem querer repetir, naturalmente com as melhores intenções, os mesmos excessos praticados há mais de um século pelos industriais ingleses, que foram os primeiros a ter o domínio do mercado colonial ou semicolonial brasileiro, no começo do século XIX”.
Esta enaltecimento exagerado dos valores e práticas sociais que se originam nos países “desenvolvidos e modernos”, principalmente do gigante norte-americano, e o desdém para com o que é da América do Sul, são explicados com perspicácia por Gilberto Freyre: “Parece haver certa tendência, entre uns tantos americanos, para usar depreciativamente a expressão ‘latino-americano’, sob a impressão de que nas Américas tudo aquilo que é latino seja sempre inferior ao anglo-saxão ou ao nórdico. Trata-se de tendência semelhante ao uso inadequado dos adjetivos ‘medieval’ e ‘feudal’, ou ‘chinês’ e ‘mouro’ em suas relações com a civilização moderna, como se a Idade Média e o Oriente não houvessem contribuído para a humanidade com valores superiores àqueles oferecidos ao homem na era, geralmente glorificada, da chamada “Iluminação”; ou aos que lhe tenham oferecido as revoluções Comercial e Industrial do Ocidente”.
Neste sentido, o messianismo técnico e economicista civilizador de orientação yankee ou europeizante iluminista é, invariavelmente, uma força de desnacionalização e destradicionalizacão, que acaba por debilitar e dividir as energias espirituais de uma comunidade. São destes centros culturais que emanam as duas principais ideologias modernas de dominação: o liberalismo e o progressismo. Ambas, de formas distintas e heterogêneas, destroem os fundamentos econômicos, sociais, morais e espirituais dos povos. São estas as duas faces da verdadeira degradação: a barbárie soft, social e cultural, do mundo moderno e pós-moderno; de um lado neoiluminista, tecnocrático e supercapitalista, e de outro relativista, subjetivista e irracional.
Apesar disto, penso que os modernismos e pós-modernismos serão superados, não estarão mais em nossa frente, mas atrás de nós, no passado.
O homem brasileiro e ibero-americano não deve se envergonhar de sua condição, muito pelo contrário. Devemos ter orgulho acerca do que atualmente somos e do que podemos ser, cultivando de maneira saudável e equilibrada a nossa peculiar alegria de viver, nosso jeito simples, espontâneo, receptivo, bondoso e amável. O futuro está no novo mundo, nos trópicos. Como afirmou certa vez com tom profético o grande escritor austríaco Stefan Zweig, o Brasil é o país, a terra, do futuro.

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