Cesar Ranquetat Jr
Ao contrário do que é frequentemente apregoado, a verdadeira e decisiva antítese não é entre revolução e contrarrevolução, mas entre Tradição sacra e Subversão mundial. Esta não é uma simples questão semântica e terminológica, mas um fato real e de natureza metahistórica com consequências práticas e políticas cruciais.
A disputa entre um mero conservadorismo social “reativo” e defensivo que "congela e fixa" determinadas forças, potências e instituições mundanas – em geral decadentes e espiritualmente vazias – e o progressismo, que tudo quer mudar e dissolver, pouco ou nada tem a ver com a Tradição. Segundo o cientista político e filósofo católico Silvano Panunzio, neste caso talvez seja mais apropriado falar de forças antitéticas na superfície, na aparência, mas no fundo complementares. Ambas são, de certo modo, frutos do mundo moderno. Uma encarnando os valores burgueses e capitalistas do “terceiro estado” com um verniz moralizante, e a outra defendendo os valores do proletariado e do lumpemproletariado, do “quarto estado” e do “quinto estado” dos “párias” que representam, grosso modo, a intensificação dissolutiva dos valores burgueses e liberais num mar de confusão, irracionalidade e primitivismo. É a solidez burguesa e materialista que se desintegra, se desmancha no abismo do nada. Estamos aqui diante de uma espiral sem saída, de uma dinâmica de retroalimentação, de um estranho movimento de golpes e contragolpes, de ação e reação que parece não ter fim.
A revolução gera a reação que, por sua vez, acaba por suscitar e alimentar uma nova revolução. Desta maneira, se reproduzem os processos sociais e políticos que tendem a estimular perspectivas e práticas parciais, unilaterais e excessivas que nunca parecem alcançar o equilíbrio, como por exemplo a defesa intransigente da lei e da ordem sem liberdade e justiça social, ou então, em outro extremo, a busca por um utópico reino da igualdade sem ordem e liberdade.
É preciso ressaltar: o embate decisivo que se desenrola de maneira subterrânea ao longo da história universal é entre a Tradição e a Subversão mundial. Entendendo a primeira em um sentido mais amplo, universal e superior de Tradição eterna, sacra, divina e cristíca, e não mero costume, história ou hábito social humano. As tradições humanas, criadas pelos indivíduos e coletividades, são construções passageiras, o que é verdadeiramente perene e imutável é a ordem divina, as leis eternas que regem com amor e misericórdia este mundo. Indubitavelmente,na sociedade, na cultura e na política não agem apenas forças humanas, mas também forças invisíveis do alto e do subsolo. Desde uma perspectiva tradicional, pode-se afirmar que os acontecimentos históricos e as situações sociais e políticas apresentam uma faceta visível, onde atuam os agentes humanos individuais e coletivos com seus interesses ideológicos, axiológicos e econômicos; e uma dimensão invisível, dirigida de um lado por forças espirituais, celestes, e de outro, por potências demoníacas e luciferinas. O homem está no centro desta batalha, que, vale ressaltar, também se desenrola em sua própria alma.
É curiosa a etimologia das palavras subversão e perversão. Originadas do latim, apresentam o mesmo sentido de inverter e derrubar. Subversão vem de subvertere e perversão de pervertere. A subversão é uma perversão, que começa com a rebelião das paixões e pulsões contra a ordem luminosa do espírito. Igualmente, a perversão conduz à subversão, ou melhor, a frenética e obstinada busca de construir um mundo caótico, que seja a projeção na sociedade da alma desordenada do indivíduo moralmente corrompido. Em um registro cultural, o que está sendo derrubado, aniquilado e invertido é a própria tradição espiritual, intelectual e moral fundacional.
Conforme explica o filósofo católico Silvano Panunzio, imaginar que as forças da subversão mundial estão localizadas exclusivamente e de maneira fixa em um único lado, “parte”, ou setor perfeitamente delimitável e, que, deste modo, podem ser facilmente percebidas e distinguidas é uma simplificação histórica e sociológica. Ademais, os múltiplos agentes reais da antitradição e da pseudotradição possuem, essencialmente, uma raiz invisível e imaterial e suas redes e canais de ação são diversos, difusos e móveis. Sendo assim, é errado identificá-los com a ação de um único grupo, facção, movimento ou força política. Não há uma “central secreta” exclusivamente humana ou uma espécie de “bloco monolítico” mundano que comanda o processo na sua inteireza. Se existe um núcleo duro este se encontra para além ou para aquém do simplesmente humano e terrestre; tocamos aqui em um mistério metafísico que atravessa os milênios, no problema do mal e do choque entre as ondas do ser e as correntes do nada e do caos, e de como estas se manifestam no mundo das relações humanas e da vida social provocando revoluções, convulsões sociais e desequilíbrios de todo o tipo. De forma esquemática e simbólica, é possível afirmar a existência de uma corrente positiva na história universal (Tradição Sacra) e de uma corrente negativa (Subversão), ou melhor, um embate cósmico e humano entre as potências celestes e as potências telúricas.
O grande escritor francês Joseph de Maistre, em que pese certo anacronismo reacionário, na obra Considerações sobre a França, faz uma penetrante observação antropológica que, até certo ponto, confirma alguns dos diagnósticos e explicações realizadas neste texto:
Observou-se com muita razão que é a Revolução Francesa que conduz os homens, mais do que os homens a conduzem a ela. Esta observação é da maior justiça e apesar de ser mais ou menos aplicável a todas as grandes revoluções, nunca foi no entanto tão impressionante como nesta época. Mesmo os celerados que parecem conduzir a revolução não participam nela senão como simples instrumentos; e logo que têm a pretensão de a dominar, caem ignominiosamente. Aqueles que realizaram a revolução fizeram-no sem o querer e sem o saber que o faziam; foram conduzidos pelos acontecimentos: um projeto anterior não teria sido bem sucedido.
Apesar desta iluminadora descrição do que é a Revolução, Joseph de Maistre parece não ter compreendido que para restaurar e retornar à verdadeira Tradição não basta opor à revolução o seu contrário, ou seja, a contrarrevolução, pois, esta pode direta ou indiretamente alimentar uma nova revolução, eis que a sede de justiça proclamada no Evangelho não pode ser evitada, conforme explica o filósofo católico Silvano Panunzio. A justiça social necessita ser realizada e os abusos de poder e os privilégios de uma aristocracia decadente transmutada em uma oligarquia fechada precisam ser combatidos. Na decadência das elites espirituais e políticas dirigentes encontra-se um dos fatores desencadeadores das revoluções.
Em termos estritamente sociológicos, a revolução contra a Tradição não é de forma alguma um fenômeno unitário, nascendo de uma confluência de uma série de correntes de pensamento e ideologias vinculadas com a cultura iluminista, com o marxismo, com a cultura burguesa individualista e com a afirmação de uma mentalidade tecnocrática e utilitária que parece permear na atualidade todos os campos da vida social. O que há de comum nestas mentalidades é, de acordo com filósofo italiano Augusto Del Noce, um crítica radical ou sutil, explícita ou implícita, da existência de princípios espirituais absolutos e eternos e, ainda, a contestação relativista e historicista da ideia de uma verdade objetiva e universal, isto é, uma tentativa planejada de demolição dos valores permanentes.
É interessante notar que, ultrapassando o plano meramente social e pedestre da política cotidiana, a subversão mundial dirigida por forças mais que humanas, verdadeiramente infernais, pode usar de aparentes antagonismos para fazer com que a humanidade permaneça presa e anestesiada em falsas oposições pueris que, cabe aqui ressaltar, se retroalimentam e se atraem inconscientemente. São os extremos que se tocam e geram o ciclo interminável de ações e reações.
Entender este jogo dialético da subversão e sair deste círculo infernal é o primeiro passo para a libertação e para o começo da obra de regeneração interior e exterior e, portanto, de uma autêntica restauração espiritual e social.
No entanto, esta dualidade cósmica e histórica, isto é, esta antítese entre as forças da ordem e da desordem, entre os princípios da conservação e da desintegração é provisória, pois para além de todo este teatro de lutas e combates existente na ordem terrena e cósmica há uma força superior e transcendente que é Deus. A ordem divina conduz silenciosamente e com infinita sabedoria e bondade o jogo cósmico. Cristo, o Filho de Deus, é o Senhor da história e o Rei de toda a criação, seu poder e sua glória não se equiparam ao domínio temporário do Anticristo e de sua pseudocivilização antropocêntrica. Não podemos cair em um dualismo extremado e maniqueísta que, equivocadamente, assume a ideia de que Deus e o Diabo são entidades com o mesmo poder. O bem sempre supera o mal, a luz vence as trevas, do mesmo modo que o ser é mais intenso e firme que o não-ser; o céu brilha com sua beleza acima da terra e do submundo infernal.
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