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Em defesa da gentileza

Cesar Ranquetat Jr.



A gentileza está fora de moda? Parece que sim. Na verdade, um conjunto importante de virtudes e atitudes de cortesia e civilidade estão sendo deixadas de lado, esquecidas e não infrequentemente vistas como simples resquícios “obscurantistas” de épocas passadas. Em diversos âmbitos da vida coletiva, declina a senhora gentileza. Nas redes sociais, no mundo da política, na esfera da cultura popular e no campo midiático multiplicam-se as posturas e estilos marcados pela grosseria, vulgaridade e rispidez.


Um indício muito claro disto é a forma impessoal e mecânica como interagimos com pessoas reais nas redes sociais, no envio de mensagem por e-mail e em outros mecanismos da tecnologia digital. Usualmente sequer dirige-se a palavra ao interlocutor fazendo menção ao seu nome pessoal ou mesmo utilizando pronomes de tratamento. O bom dia, o boa tarde e o boa noite, o obrigado, o por favor, o desculpe, o com licença, o abraço e o até mais estão a se evaporar do mundo digital e do mundo concreto. Porém, estas práticas impessoais de extrema informalidade, próprias de uma sociedade líquida, mecânica e tecnológica, estão a penetrar também nas interações sociais cotidianas. Não são raras as ocasiões, principalmente nas grandes cidades, na qual não mais se cumprimentam os vizinhos e os colegas de trabalho, e nem mesmo olha-se no rosto das pessoas que estabelecemos rápidos encontros em um mercado, farmácia ou outro comércio qualquer.


Olhar para os olhos de uma pessoa, esboçar um sorriso afetuoso, e se possível chamá-la pelo seu nome é reconhecer nela um indivíduo com valor; e é claro um indício de boa educação. Acrescentam-se os casos em que formulamos algum questionamento a uma pessoa, órgão midiático ou outra entidade qualquer, e simplesmente não obtemos resposta alguma. Aqui, como em outros casos similares, o modo de vida veloz, fluido, volátil, e a moral do utilitarismo e do interesse egoístico, parecem predominar sugestionando e contaminado a mente de parte expressiva da população mundial. A fuga das responsabilidades, a recusa de todo compromisso mais sério, a falta de pontualidade, os discursos grandiloquentes e a ação deficiente e em desacordo com o proclamado, a inconsistência e a volubilidade são traços essenciais do homem contemporâneo.


A gentileza e a cortesia nas relações humanas e na convivência comunitária não são adornos supérfluos, muito pelo contrário. São estas atitudes a base essencial para a harmonia da vida social, atraindo e estimulando os indivíduos para a boa vontade, a generosidade e o altruísmo nas interações com o próximo. Ser gentil com alguém é mostrar respeito por determinado indivíduo, e considerar sua dignidade de pessoa humana, seu valor enquanto um ser único e insubstituível. Quanto tratamos um indivíduo com agressividade, frieza e desprezo, acabamos por transformá-lo em uma coisa, um objeto, um algo qualquer, um instrumento que pode ser usado e abusado; degradamos o sujeito a condição passiva de um simples brinquedo que gera prazer ou repulsa.


Aqui não estamos dissertando acerca apenas de boas maneiras ou de meras convenções e etiquetas sociais, mas de algo mais importante. A bondade e a abertura respeitosa no trato com o outro é um excelente exercício moral e uma espécie de pedagogia para a formação de uma alma reta, bela e caridosa. A prontidão, a polidez e a suavidade na interação com o próximo desloca o nosso centro de atenção de nosso ego para a outra pessoa, nos tira do estado de ensimesmamento. Como podemos ser boas pessoas se não somos bons com outros? Como podemos ser pessoas civilizadas se não somos civilizados em nossas relações com as pessoas próximas? Como podemos atingir a harmonia interior através de comportamentos belicosos, raivosos e vis que perturbam nossa paz de espírito? O caminho para a elevação interior começa nas pequenas coisas.


Interessante notar que, nas sociedades tradicionais e, principalmente, na antiguidade grego-romana, a cortesia e a gentileza eram equiparadas com as noções de urbanitas, civilitas e humanitas, ou seja, com as ideias de urbanidade, civilidade e humanidade. A urbanitas do homem da urbe, da cidade, se opunha a rudeza; a civilitas, do civis, do cidadão, era um tipo de conduta fundada na solidariedade, no afeto, na cordialidade e bondade; a humanitas, era a expressão concreta nos relacionamentos sociais da educação, da cultura, da sensibilidade e atenção.


Não há civilização e humanidade sem a cortesia e a polidez. Sempre é bom enfatizar que no mundo animal não existem estas formalidades e cerimoniais, mas apenas rugidos, grunhidos, latidos e balbucios. Desprezar as regras de gentileza é uma perigosa senda para a animalização do humano e a destruição da cultura.


O declínio da gentileza e da cortesia relaciona-se com o enfraquecimento da importância dos rituais sociais na vida cotidiana. A cortesia e a civilidade são modos de ritualizar o contato com o outro, de cercá-lo de certa gravidade. Lembro que, em algumas sociedades tradicionais, os gestos de aproximação duravam cerca de 30 minutos, quando não mais. Sabemos que este cuidado reverencial e a cerimonialização dos contatos sociais e dos gestos de cumprimento ainda permanece muito vivo nas culturas orientais. No entanto, na era da banalidade, das gírias, da moda, do palavreado vulgar, do ruído, das gritarias, dos xingamentos e dos gestos rudes tudo isto parece estar ultrapassado. Regressamos a um estado de primitivismo e barbárie, percebendo, erroneamente, o abandono da cortesia e dos rituais da vida cotidiana como um sinal de progresso e emancipação. Trocamos o espírito cavalheiresco pela mentalidade plebeia. O comportamento e a linguagem vulgar e “descontraída” do mundo da cultura profana de massas ameaça tomar conta do mundo, invadindo inclusive os recintos sacros. É verdade que, por outro lado, existem modos de cortesia excessivamente formalistas, falsos e artificiais. Há que se tomar cuidado em relação a isto. A virtude está sempre no meio.


A cortesia, a gentileza e a civilidade no trato com as outras pessoas é, ainda, uma manifestação de autodomínio e controle sobre os próprios impulsos e paixões. O cuidado no uso das palavras, a atenção em relação aos gestos e posturas no confronto amistoso com as outras pessoas é uma forma de ascese e disciplina interior. Comportamentos reais de cortesia, generosidade e benevolência são ações de valor, delicadeza e nobreza que, dentre outros aspectos, são provas e testes que servem para medir o caráter de um indivíduo e, portanto, colocar em ato e testemunhar o poder de sua vontade, a sua paciência e a qualidade de seus sentimentos.



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