Cesar Ranquetat Jr
Não há como negar que vivemos em uma sociedade pós-industrial, na chamada “era da informação”, em um mundo dominado pelas novas tecnologias digitais e da comunicação. Nossas vidas estão cada vez mais atravessadas por estes novos dispositivos técnicos. Cada vez se torna mais difícil escapar das redes digitais tecidas pelos arquitetos deste novo mundo cibernético. O mundo digital e da informação em tempo real é praticamente o ar que nós respiramos diariamente.
A ideia de uma nova e global sociedade da informação começa a ganhar força na década de 1970 nos programas de pesquisa de vários governos e instituições internacionais. Conforme o sociólogo Armand Matellart, a partir de 1975, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e quatro anos mais tarde na União Europeia, este projeto é explicitamente formalizado e institucionalizado. Além disso, com o avanço nas décadas de 1980 e 1990 das desregulamentações financeiras e das privatizações, a ideia da era da informação se mescla com a mensagem de uma “idade global”. Em 1994, o vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, anuncia seu projeto de “infovias”, conhecido como Global Information Infrastructure. Em fevereiro de 1995, os países do G7 ratificaram em Bruxelas a noção de global society of information, e ainda decidiram neste mesmo evento acelerar a liberalização dos mercados das telecomunicações. Em maio de 2000, em um encontro em Lisboa dos representantes dos países que compõem a União Europeia, foi decidido um empenho conjunto e articulado de ações e medidas para o aperfeiçoamento da Internet. A nova era digital se afirma. Contudo, as bases ideológicas e o teatro de operações montado para a implantação destas novas tecnologias e deste novo modelo de sociedade vêm de mais longe. Rastreio e exploro aqui algumas pistas e hipóteses de trabalho sobre esta questão.
Segundo o sociólogo canadense Maxime Ouellet, as novas tecnologias digitais e da informação representam a materialização do imaginário cibernético que está no coração da teoria econômica liberal. Por volta da década de 1940, o economista e filósofo da Escola Austríaca, Friederich Hayek, estabelece uma analogia entre o mercado e o sistema cibernético. Os agentes econômicos são percebidos como processadores informacionais, e como corolário o mercado é concebido como um mecanismo cibernético de transmissão da informação. Baseando-se em uma analogia entre o papel do sistema de preços no mercado e um sistema de telecomunicações, Hayek antecipa de uma maneira quase profética o discurso sobre a “sociedade da informação”. Na visão neoliberal do economista austríaco, o capitalismo é um mecanismo comunicacional ou mesmo cibernético, na medida em que o mercado tende a reduzir os ruídos que obstaculizam o sistema de preços – compreendido como um sistema de comunicação da informação – para que funcione eficazmente. É importante sublinhar que, de maneira implícita, Hayek cria uma espécie de manifesto da “economia do saber”, que apresenta inegáveis contornos pós-modernos, pois prefigura a decadência da razão em suas pretensões por captar de maneira sintética a realidade. Com efeito, segundo o renomado economista austríaco, é materialmente impossível que uma autoridade centralizada possua o conjunto de informações disponíveis para alocar eficazmente os recursos. Porém, o fundamental neste ponto, para além das explicações técnicas, é entender que, em termos sociais e culturais, a revolução no campo das tecnologias digitais e da informação é concomitante com o surgimento, o desenvolvimento e a consolidação dos princípios econômicos neoliberais.
É curioso e revelador que, em outra direção aparentemente oposta, em 1958 a Academia Soviética de Ciências publica um informe com o título A cibernética a serviço do comunismo. Este documento pretendia fazer da cibernética a ciência oficial do regime comunista ao aplicar suas conquistas para planificar a produção e a distribuição de bens materiais na URSS, conforme explica o já citado cientista social canadense. Paradoxalmente, lembro que a cibernética foi criada pelo matemático americano Nobert Wiener, que no início da Segunda Guerra Mundial ofereceu seus serviços ao governo norte-americano. É esta justamente a ciência dos sistemas de comunicação e controle nas máquinas e nos seres vivos. Investigando, sobretudo, como sistemas complexos funcionam por meio do uso de dados, informações, feedback e interação. Esta ciência surgiu com a pretensão de “pilotar” o mundo do futuro e possui como elemento central o conceito de informação.
Entretanto, os princípios da cibernética foram de fato colocados em prática com objetivos de planificação econômica e controle social no começo da década de 1970 no Chile, durante o governo socialista de Salvador Allende. Segundo o pesquisador Evgeny Morozov, o projeto Cybersyn visava rastrear informações e “dados massivos”, o chamado Big Data, com a finalidade de planificação social. O projeto ficou conhecido também como SYNCO – Sistema de Informação e Controle.
O governo de Allende trouxe para o Chile o cientista britânico Anthony Stafford Beer, um estudioso da cibernética que tinha trabalhado como executivo e diretor de grandes corporações como a United Steel e a International Publishing Corporation, com a missão de criar um sofisticado sistema de informação para mapear e monitorar a atividade social e econômica das centenas de empresas estatizadas pelo regime socialista chileno. O sistema funcionava da seguinte forma: uma rede de teletipos, máquina de escrever eletromecânica para transmissão de dados, fornecia as informações de cada empresa estatal, em tempo quase real, para um centro de operação computacional chamado Opsroom que processava e analisava o conjunto dos dados. Com isto, procurava-se obter certas previsões, antecipar possíveis problemas e instabilidades, tomar decisões e traçar diretivas para aperfeiçoamento do processo produtivo. A vida diária das empresas, dos gerentes e trabalhadores era inteiramente monitorado. O socialismo de Allende era inegavelmente uma tecnocracia de vanguarda.
O projeto Cybersyn também previa o monitoramento e a análise do nível de felicidade, em termos de prazer e de dor, da nação chilena de acordo com as decisões políticas e sociais tomados pelo governo socialista. Esta faceta “social” e psicológica do projeto chamava-se Cyberfolk. Um projeto bastante visionário e futurista para a época, que, de certo modo, antecipou certas tecnologias digitais e da comunicação atuais. Empregou-se nos tempos de Allende, formas iniciais de sentiment analysis e de data mineration hoje bastante corriqueiras que, a partir dos vestígios deixados pelos utilizadores das redes sociais, objetivam predizer e antecipar comportamentos em matéria de consumo.
O cientista Stafford Beer, entendia que a “informação” era um importantíssimo recurso nacional para administrar e gerenciar o comportamento de uma coletividade. A comunicação seria, portanto, um valioso instrumento de controle e engenharia social. Surpreendentemente, Friederich Hayek conheceu pessoalmente o cientista Beer, concordando com as suas teóricas cibernéticas, mas opondo-se a ideia de uma planificação centralizada da economia. O sistema de informação socialista foi destruído com a instauração da ditadura de Pinochet, que, por ironia da história, foi o laboratório de experimentação para a instauração de políticas econômicas liberais apoiadas pelo economista austríaco.
É importante sublinhar que para a perspectiva neoliberal o mercado e, podemos ir ainda mais longe; a própria sociedade funciona de uma maneira cibernética. As ideias de uma suposta “ordem espontânea”, de uma economia e uma sociedade autorreguladas são muito próximas do paradigma cibernético. Os indivíduos são percebidos como feixes de informações, como microprocessadores ambulantes, e as novas tecnologias digitais e de comunicação são concebidas como forças emancipadoras e “empoderadoras”. O indivíduo é assim reduzido à condição de “capital humano”, de gestor e de empreendedor de si mesmo que se autorregula em função das informações transmitidas em seu ambiente.
A salvação e libertação puramente terrestre do homem, rebaixado a uma simples unidade numérica, derivam assim da técnica transmutada em uma espécie de força mágica com um imenso poder de seduzir e sugestionar os povos degradados à condição de massa amorfa. O autômato do admirável novo mundo será teledirigido pelas correntes de opinião e estados de espírito programados pelos operadores desta gigantesca máquina global. Mundo informatizado, digitalizado e configurado em redes, onde o virtual suplantará o real.
Como explica com perspicácia Maxime Ouellet, capitalismo e comunismo parecem convergir para uma mesma distrofia tecnocrática, funcionando com similares programas: os da cibernética, o do utilitarismo, o do economicismo e do produtivismo.
Esta relação sutil de proximidade entre as mais poderosas e influentes ideologias modernas, o capitalismo liberal e o socialismo marxista, se expressa em toda sua potência nas avançadíssimas tecnologias de controle social e de inteligência artificial empregadas na China comunista e no universo libertário, cosmopolita e hipertecnológico do Vale do Silício (Silicon Valley). A utopia digital e tecnocrática de um governo mundial dos algoritmos e de uma sociedade global da informação começa a ganhar contornos cada vez mais nítidos.
"É hora/tempo de um capitalista fazer uma revolução"
1984 Apple Macintosh ads in Europe featuring Marx's Das Capital
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